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Cleide, Eló, Pêras, Aldeotas e Gero Camilo

fevereiro 4, 2007

Existem certas obras que parecem ser feitas de veludo. São filmes, músicas, peças teatrais e livros que te fazem viajar, se sentir tocado, mergulhar em emoções, introspecções e sentimentos que normalmente não sentimos com outras obras. No cinema é relativamente comum encontrar filmes que causem esta sensação, e que facilmente entram nas coleções de DVD, e que podem ser eternamente revistos.

Já a efemeridade do teatro muitas vezes nos impede de descobrir estas pequenas pérolas, sobretudo quando a divulgação é menor, ou quando estas pérolas não são produzidas por núcleos consagrados (sim, até mesmo fora do circuito do teatrão existem nichos e mainstream). E ainda por cima, ao contrário das músicas, filmes e livros, a possibilidade de revivals no teatro só existe em casos de remontagens e novas temporadas.

No final de 2006 estava em cartaz no histórico TBC uma dobradinha de peças do ator e dramaturgo Gero Camilo: Cleide, Eló e as Pêras e Aldeotas. Dois espetáculos para os quais eu não daria prioridade na hora de escolher o que assistir – e que de fato não dei no ano passado. Mas os elogios que ouvi da peça, por parte de diversas pessoas, me fizeram mudar de idéia, mas foi tarde demais: a temporada já havia acabado. Felizmente e para a minha sorte, ainda não era hora dos espetáculos serem engavetados, e neste ano reestrearam no Espaço Parlapatões, na praça Roosevelt, onde estão em cartaz.

Cleide, Eló e as Pêras é uma grande obra. É uma história de amor vista sob a ótica dos dois personagens do título, a costureira Cleide e o vigia Eló. A dramaturgia de Camilo passa a anos-luz de distância das pieguices que se imagina com este enredo. É um misto de teatro com poesia, sem aquele típico compromisso irritante com o racionalismo e a obviedade que as histórias de amor costumam apresentar. É uma história de amor contada pelo coração (ok, isso foi piegas).

Em cena, apenas uma cadeira vermelha e algumas pêras que fazerm parte do diálogo entre os dois personagens. Primeiro vem o monólogo de Cleide sobre Eló, interpretada com uma emoção comovente pela linda Paula Cohen. Depois é a vez do monólogo de Eló falando sobre Cleide. Gero Camilo, ator baixinho, magrinho, é um espetáculo à parte, automaticamente ganha o coração de toda a platéia com tanta poesia sendo falada com tanta paixão. Em seguida vem um diálogo que encerra o espetáculo e a platéia sai do teatro em estado de graça.

E se este espetáculo era uma grande obra, Aldeotas não merece classificação menor do que a de obra-prima. Seu subtítulo, desenho feito a lápis sobre tela branca, traduz um pouco a sensação de veludo que eu imagino em torno do espetáculo. Com a mesma poesia e beleza do outro espetáculo, este conta as lembranças de Levi a respeito de sua infância e adolescência em sua cidade natal, e de sua relação com seu melhor amigo, Elias. Tamanha nostalgia não é apresentada em forma de tristeza e nem de alegria, é apresentada com uma inocência que torna impossível não se apaixonar por aquela cidade, por aquelas histórias fantásticas, por aqueles personagens.

Com um trabalho corporal absolutamente fantástico, Gero Camilo e Marat Descartes transformam o único elemento cênico presente, um tapete branco, em quarto, açude, formigueiro, centro da terra. E o público embarca sem receio nesta viagem, boquiaberto e deslumbrado por tamanha beleza e sensibilidade. A fraternidade e cumplicidade dos personagens, as descobertas, desejos, revoluções pessoais e sobretudo seus sentimentos são contados de uma forma tão bem-humorada e tão sincera que não queremos que o espetáculo acabe nunca, não queremos que a poesia termine.

Com estes dois espetáculos Gero Camilo se mostra um artista brilhante: um ator habilidosíssimo com uma das perfromances mais marcantes que já vi em um palco, e um dramaturgo que, com sua texto despretensioso e inocente, consegue trazer ao espectador um estado de deslumbramento raro.

Recomendo com todas as forças e do fundo do coração.