O Avarento

outubro 13, 2006

Se você está em São Paulo ou passará pela cidade até novembro, recomendo fortemente o desembolso de 30 a 80 reais para assistir a O Avarento, talvez a única produção comercial em cartaz na cidade que realmente valha a pena ser vista. E como vale!

A comédia de Molière foi escolhida por Paulo Autran para ser o 90º espetáculo de sua carreira. Para traduzir, adaptar e dirigir o texto, Autran convidou (para a alegria do espectador que aqui escreve) o talentosíssimo diretor carioca-curitibano Felipe Hirsch, que conduz seu primeiro espetáculo independente da Sutil Companhia de Teatro (que completa 15 anos de história no ano que vem).

Na história, Harpagon (Autran) é um velho obcecado por seu dinheiro, que está todo enterrado em seu jardim junto com sua felicidade. Sua grande missão na terra é despistar todas as pessoas no mundo que ele acredita que estejam interessadas em sua fortuna – ou seja, todas as pessoas do mundo, sem exceção. Ocupado em seu ofício de vigiar noite e dia seu patrimônio, não consegue dar importância à felicidade de seus filhos.

Na montagem, o elemento mais fraco é o texto de Molière, autor fortemente inspirado pela commedia dell’arte italiana. Mas o problema não está exatamente no texto, e sim na atual cena teatral comercial paulistana: todo ano estréiam comédias a rodo na cidade, quase todas utilizando os mesmos recursos e o mesmo formato que Molière já utilizava no século XVII. Isso acaba diluindo a força e sobretudo o formato do texto em questão, tornando-o ingênuo. Na verdade, esse fator torna qualquer tentativa de montar uma comédia clássica uma grande armadilha: as chances de escorregar são muito grandes.

Mas aqui definitivamente Autran e Hirsch não escorregaram. O texto foi reforçado com uma apropriação impecavelmente inteligente de elementos da commedia dell’arte, fazendo com que soluções modernas e atraentes minimizassem a ingenuidade do texto e dessem muito mais força para a ambientação ao século XVII, e o mais importante: passando muito longe de parecer brega ou clichê. Aqui, deixo um destaque para o uso da ribalta na iluminação, e para a utilização das tradicionais pancadas de Molière (um ator com um bastão de madeira que bate no chão três vezes indicando que a peça vai começar, hoje substituído por irritantes campainhas com som de cigarra).

Dentre os diversos elementos visuais que valem a pena na montagem, os mais deslumbrantes sem dúvida alguma são a iluminação de Beto Bruel e a belíssima cenografia de Daniela Thomas (que acompanha Hirsch há anos em seus espetáculos), composta basicamente por caixas de madeira de diversos tamanhos, que associadas compõem uma gigantesca estante vazia que ocupa o palco de fora a fora, o que mostra com elegância e inteligência o tamanho da riqueza de Harpagon e sua avareza – uma casa imensa e sem elementos decorativos, apenas estantes vazias. Ao fundo, um painel exibe um belo céu azul que dá um tom lírico à cenografia e quebra a secura da madeira.

Tudo na montagem é caprichado ao extremo. A maquiagem e o figurino, que também são partes fundamentais na composição visual da peça, são impecáveis. Praticamente todos os personagens – inclusive Harpagon – utilizam roupas de época (ou nem tanto) em tons de bege e cáqui, que propositalmente pouco contrastam com o marrom da madeira do cenário, dando mais força ao texto e mais foco às atuações.

Falar da grandiosidade e do talento de Autran e de seu carisma no palco é chover no molhado. Mas o elenco que o acompanha também é excelente. Alguns já o acompanham de longa data, como sua antiga parceira Karin Rodrigues, e Elias Andreato, com quem o ator havia trabalhado em seus últimos projetos, e há também uma geração de atores mais jovens e talentosíssimos, o que é o caso de Arieta Corrêa, recém-saída do CPT de Antunes Filho (e única atriz que me lembro de ter visto em cena em outros projetos). A direção de Felipe Hirsch também é precisa e caprichada, o que comprova que o talento do diretor vai muito além da linguagem multimídia e cinematográfica que ele utiliza com abundância nos projetos da Sutil Companhia.

Enfim, O Avarento é uma prova de que o chamado “teatrão comercial” pode render produções grandiosas e históricas. Apesar da platéia não sair com a barriga doendo de tanto rir como está acostumada a fazer com outras comédias em cartaz, ela sai extremamente satisfeita por ter visto um espetáculo inteligente, bem-humorado, sofisticado e sobretudo de um imenso bom gosto.

Eis a diferença entre o teatro feito pelo amor ao trabalho e não à renda da bilheteria, e principalmente, um trabalho feito envolvendo as pessoas certas, que transbordam talento e qualidade naquilo que fazem. Definitivamente, se todo o teatro comercial fosse bom assim, eu viraria fã de carteirinha e nunca mais falaria mal do mar de porcarias que encontramos todos os dias, inclusive no Teatro Cultura Artística, onde hoje está em cartaz O Avarento mas sempre traz em cartaz peças com ingressos caríssimos, elencos globais e qualidade nula, para o deleite das pessoas fúteis que se vestem bem para ir ao teatro como se fossem a um coquetel (embora elas efetivamente tomem champanhe no lobby do teatro antes, depois ou no intervalo do espetáculo).

2 Respostas to “O Avarento”

  1. Fabrício Muriana Says:

    A Cláudia Missura fez um curta mtragem com o pessoal da Abafilmes, quando eu trabalhava lá.
    Grande atriz de comédeis.
    Ela fez, no teatro, turistas e refugiados, com o Carlinhos Moreno, lá no Tucarena, logo depois da reinauguração.
    Grandes texto e peça.
    Teatro comercial tb, que poderia voltar à cena.

  2. emc Says:

    só uma coisa. pensei que “expectador” tivesse algo a ver com “expectorante”, tipo aqueles remédios que o paciente toma quando está com catarro, mas o dicionário me disse que tem relação com “que ou aquele que permanece na expectativa”.

    acho que você quis dizer “espectador” ali no segundo parágrafo, no sentido de “aquele que assiste a um espetáculo”.


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